Marcha a ré
Hélio Schwartsman
Comentário no Pensata da Folha, dia 31/08/2006
Definitivamente, eu deveria desistir de abordar assuntos como eleição, que despertam reações muito mais emocionais do que racionais. Sempre que me meto a comentar temas com essa característica, vejo-me em maus lençóis: cada um lê o que bem entende --independentemente do que esteja escrito-- e chega às conclusões que já tinha. E o resultado prático disso é que eu me sinto como quem prega ao vento e ainda passo por mal educado, pois não dou conta de responder a todas as mensagens que recebo. É em nome da polidez, portanto, que tento desfazer alguns dos mal-entendidos provocados pela coluna da semana passada. Ficam as minhas desculpas a todos aqueles aos quais não fui capaz de enviar uma resposta personalizada.
Posso ser acusado de muitas coisas, mas militar pela causa tucana não é uma delas. Falar mal do PT não torna uma pessoa automaticamente peessedebista. Existem situações às quais o princípio do terceiro excluído não se aplica. É verdade que não pedi o afastamento do presidente Fernando Henrique Cardoso por conta do escândalo da compra de votos. Nem poderia fazê-lo, pois, à época (1997), não dispunha desta coluna. E, já que parece ser necessário exibir credenciais anti-PSDB a fim de obter licença para escrever o que penso, posso afirmar que, em maio de 2001, no texto "O apagar de uma era, ou o Iluminismo de FHC", disse que, se o então presidente tivesse decência, teria renunciado ao cargo depois da megatrapalhada do "apagão", a crise de falta de energia elétrica. Incompetência administrativa, infelizmente, não está entre as razões que justificam o impeachment.
Também devo rejeitar a acusação de golpista a mim pespegada. Assim como não era golpe pedir o impeachment de FHC, tampouco o é fazê-lo em relação a Lula. O "Aurélio" define "golpe de Estado" como "subversão da ordem constitucional". Ora, o afastamento do presidente da República por crime de responsabilidade está previsto na Carta. Não pode assim, por definição, ser considerado contrário à Lei Maior. E em nenhum instante sugeri que devêssemos erguer barricadas ou sair às ruas para depor Lula. A rigor, afirmei desde o primeiro instante que não acreditava que houvesse condições políticas para processar o presidente e menos ainda para tirá-lo definitivamente do cargo. Limitei-me a lamentar o prejuízo institucional que advém do fato de termos flagrado o círculo íntimo do presidente da República metido numa série de falcatruas e nada ter ocorrido. O triunfo da impunidade esfacela o ideal republicano da universalidade da lei.
Não estou afirmando aqui que o PT é mais ou menos corrupto que o PSDB. Não creio que os petistas tenham realmente feito muito pior do que seus antecessores. Acho que, em 1997, havia, sim, elementos suficientes para pedir o afastamento de FHC. Só que o fato de o tucano ter-se safado no passado não é argumento para que deixemos de aplicar a lei agora. Não estamos numa gincana da fraude na qual o benefício uma vez dado a um dos times deve ser estendido ao outro.
Numa República não é assim que as coisas deveriam funcionar. Assassinos escapam da punição todos os dias. Só que isso não é argumento para que o policial diligente deixe alguém apanhado com a faca e o cadáver na mão sair livre. Goste ou não, o agente da lei está obrigado a prender o sujeito.
Aos que me cobraram "provas", recomendo dar uma olhadela na denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, que não é exatamente um tucano. Foi escolhido para o cargo pelo próprio presidente Lula e fez seu trabalho com base em dados recolhidos pela Polícia Federal, também sob comando do governo. Nas 136 páginas de seu relatório, Souza não economizou nas passagens do Código Penal. Não apenas "confirma" o mensalão como viu na ação de auxiliares do presidente indícios dos delitos de formação de quadrilha, corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e peculato. Escreveu com todas as letras que o objetivo do consórcio criminoso era "garantir a continuidade do projeto de poder do Partido dos Trabalhadores mediante a compra de suporte político de outros partidos e do financiamento futuro e pretérito das suas próprias campanhas eleitorais".
O próprio Lula em momentos de maior fragilidade reconheceu que houve desmandos. Chegou a afirmar que fora "traído" e que o partido e o governo deviam "desculpas" ao país. Temos, portanto, que o mensalão é bem mais do que o fruto do delírio de um oposicionista imaginoso. Também não acredito que os parlamentares do PT apanhados com recursos obtidos através do esquema urdido pelo publicitário Marcos Valério Souza tenham sido remunerados para votar a favor do governo --hipótese que parece meio besta. O fato é que foram agraciados com dinheiro ilegal, muito provavelmente desviado de estatais, e isso é inadmissível. Pouco importa se os montantes foram usados para saldar dívidas de campanha ou para comprar iates ou TVs de plasma. Não será restringindo as possíveis significações do termo "mensalão" que os crimes cometidos se tornarão mais palatáveis.
O que me incomoda na cada vez mais provável reeleição de Lula não é a aprovação popular a seu governo. Como todo administrador, Lula fez coisas boas e ruins. Cada eleitor é o melhor juiz do quanto houve de acertos e de erros. Preocupa-me é o novo limiar que atingimos no campo da ética. Se há uma idéia que o primeiro governo Lula consagra, é a de que todos os políticos metem a mão, cabendo ao cidadão escolher os que fazem mais coisas em favor da população. Essa é uma concepção empobrecedora. É claro que a carreira política sempre atrairá aproveitadores. Daí não se segue que apenas réprobos a abracem. E haverá tanto mais picaretas na vida pública quanto mais formos leniente na hora de julgá-los nas urnas.
Longe de mim defender uma cruzada moralista. Elas normalmente apenas escondem vícios ainda piores. Em geral as coisas andam para a frente, seja no plano da economia, dos indicadores demográficos e sanitários. Apenas em situações extremas, freqüentemente associadas a guerras e outras catástrofes, é que essas estatísticas pioram. Receio que, no caso da tolerância para com o mau comportamento de políticos, estejamos, contra a ordem natural das coisas, caminhando para trás. Não tanto porque o PT tenha se revelado um partido pior do que os outros, mas principalmente porque a legenda que simbolizava a intransigência no campo ético se mostrou um partido voracissimamente igual aos demais.
Comentário disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult510u258.shtml
Comentário no Pensata da Folha, dia 31/08/2006
Definitivamente, eu deveria desistir de abordar assuntos como eleição, que despertam reações muito mais emocionais do que racionais. Sempre que me meto a comentar temas com essa característica, vejo-me em maus lençóis: cada um lê o que bem entende --independentemente do que esteja escrito-- e chega às conclusões que já tinha. E o resultado prático disso é que eu me sinto como quem prega ao vento e ainda passo por mal educado, pois não dou conta de responder a todas as mensagens que recebo. É em nome da polidez, portanto, que tento desfazer alguns dos mal-entendidos provocados pela coluna da semana passada. Ficam as minhas desculpas a todos aqueles aos quais não fui capaz de enviar uma resposta personalizada.
Posso ser acusado de muitas coisas, mas militar pela causa tucana não é uma delas. Falar mal do PT não torna uma pessoa automaticamente peessedebista. Existem situações às quais o princípio do terceiro excluído não se aplica. É verdade que não pedi o afastamento do presidente Fernando Henrique Cardoso por conta do escândalo da compra de votos. Nem poderia fazê-lo, pois, à época (1997), não dispunha desta coluna. E, já que parece ser necessário exibir credenciais anti-PSDB a fim de obter licença para escrever o que penso, posso afirmar que, em maio de 2001, no texto "O apagar de uma era, ou o Iluminismo de FHC", disse que, se o então presidente tivesse decência, teria renunciado ao cargo depois da megatrapalhada do "apagão", a crise de falta de energia elétrica. Incompetência administrativa, infelizmente, não está entre as razões que justificam o impeachment.
Também devo rejeitar a acusação de golpista a mim pespegada. Assim como não era golpe pedir o impeachment de FHC, tampouco o é fazê-lo em relação a Lula. O "Aurélio" define "golpe de Estado" como "subversão da ordem constitucional". Ora, o afastamento do presidente da República por crime de responsabilidade está previsto na Carta. Não pode assim, por definição, ser considerado contrário à Lei Maior. E em nenhum instante sugeri que devêssemos erguer barricadas ou sair às ruas para depor Lula. A rigor, afirmei desde o primeiro instante que não acreditava que houvesse condições políticas para processar o presidente e menos ainda para tirá-lo definitivamente do cargo. Limitei-me a lamentar o prejuízo institucional que advém do fato de termos flagrado o círculo íntimo do presidente da República metido numa série de falcatruas e nada ter ocorrido. O triunfo da impunidade esfacela o ideal republicano da universalidade da lei.
Não estou afirmando aqui que o PT é mais ou menos corrupto que o PSDB. Não creio que os petistas tenham realmente feito muito pior do que seus antecessores. Acho que, em 1997, havia, sim, elementos suficientes para pedir o afastamento de FHC. Só que o fato de o tucano ter-se safado no passado não é argumento para que deixemos de aplicar a lei agora. Não estamos numa gincana da fraude na qual o benefício uma vez dado a um dos times deve ser estendido ao outro.
Numa República não é assim que as coisas deveriam funcionar. Assassinos escapam da punição todos os dias. Só que isso não é argumento para que o policial diligente deixe alguém apanhado com a faca e o cadáver na mão sair livre. Goste ou não, o agente da lei está obrigado a prender o sujeito.
Aos que me cobraram "provas", recomendo dar uma olhadela na denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, que não é exatamente um tucano. Foi escolhido para o cargo pelo próprio presidente Lula e fez seu trabalho com base em dados recolhidos pela Polícia Federal, também sob comando do governo. Nas 136 páginas de seu relatório, Souza não economizou nas passagens do Código Penal. Não apenas "confirma" o mensalão como viu na ação de auxiliares do presidente indícios dos delitos de formação de quadrilha, corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro e peculato. Escreveu com todas as letras que o objetivo do consórcio criminoso era "garantir a continuidade do projeto de poder do Partido dos Trabalhadores mediante a compra de suporte político de outros partidos e do financiamento futuro e pretérito das suas próprias campanhas eleitorais".
O próprio Lula em momentos de maior fragilidade reconheceu que houve desmandos. Chegou a afirmar que fora "traído" e que o partido e o governo deviam "desculpas" ao país. Temos, portanto, que o mensalão é bem mais do que o fruto do delírio de um oposicionista imaginoso. Também não acredito que os parlamentares do PT apanhados com recursos obtidos através do esquema urdido pelo publicitário Marcos Valério Souza tenham sido remunerados para votar a favor do governo --hipótese que parece meio besta. O fato é que foram agraciados com dinheiro ilegal, muito provavelmente desviado de estatais, e isso é inadmissível. Pouco importa se os montantes foram usados para saldar dívidas de campanha ou para comprar iates ou TVs de plasma. Não será restringindo as possíveis significações do termo "mensalão" que os crimes cometidos se tornarão mais palatáveis.
O que me incomoda na cada vez mais provável reeleição de Lula não é a aprovação popular a seu governo. Como todo administrador, Lula fez coisas boas e ruins. Cada eleitor é o melhor juiz do quanto houve de acertos e de erros. Preocupa-me é o novo limiar que atingimos no campo da ética. Se há uma idéia que o primeiro governo Lula consagra, é a de que todos os políticos metem a mão, cabendo ao cidadão escolher os que fazem mais coisas em favor da população. Essa é uma concepção empobrecedora. É claro que a carreira política sempre atrairá aproveitadores. Daí não se segue que apenas réprobos a abracem. E haverá tanto mais picaretas na vida pública quanto mais formos leniente na hora de julgá-los nas urnas.
Longe de mim defender uma cruzada moralista. Elas normalmente apenas escondem vícios ainda piores. Em geral as coisas andam para a frente, seja no plano da economia, dos indicadores demográficos e sanitários. Apenas em situações extremas, freqüentemente associadas a guerras e outras catástrofes, é que essas estatísticas pioram. Receio que, no caso da tolerância para com o mau comportamento de políticos, estejamos, contra a ordem natural das coisas, caminhando para trás. Não tanto porque o PT tenha se revelado um partido pior do que os outros, mas principalmente porque a legenda que simbolizava a intransigência no campo ético se mostrou um partido voracissimamente igual aos demais.
Comentário disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/ult510u258.shtml
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