sábado, agosto 26, 2006

Os intelectuais, a ética e a política

Por Ruy Fabiano, do Blog do Noblat

Quem se der ao trabalho de confrontar o noticiário dos encontros entre Lula e intelectuais nas campanhas de 2002 e na atual há de constatar o imenso abismo conceitual que se cavou entre um momento e outro. Em ambos, o tema predominante é o mesmo: ética na política. A sutil diferença é que, enquanto no primeiro, afirmava-se o império da ética, no de agora celebra-se o seu velório.
Sustentou-se, com a maior naturalidade, no encontro de segunda-feira passada, 21, na casa do ministro da Cultura, Gilberto Gil, no Rio, que ambas – ética e política - são simplesmente incompatíveis. O ator Paulo Betti resumiu: “Política não existe sem mãos sujas. Não dá para fazer sem botar a mão na merda (sic)”.
Em poucas palavras, a tentativa de justificar as aberrações que marcaram – e hão de marcar, história afora - o governo Lula: mensalão, caixa dois, dólares na cueca, sanguessugas etc. “Não dá para fazer política sem botar a mão na merda” – e pronto.
O compositor e maestro Wagner Tiso, autor da imortal canção “Coração de Estudante”, que embalou campanhas memoráveis como a das diretas-já e a de Tancredo Neves, no tempo em que artistas e intelectuais brasileiros iam aos palanques para pedir ética na política, informou que votará em Lula e no PT. E explicou a’O Globo (23.08):
“Não estou preocupado com a ética do PT ou com qualquer tipo de ética. Para mim, isso não interessa. Eu acho que o PT fez um jogo que tem que fazer para governar o país, entendeu?”
Ou seja, o que foi feito – e que o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, classificou, em denúncia ao Supremo Tribunal Federal, de “formação de uma organização criminosa” dentro da administração pública, com o objetivo de perpetuar no Poder o atual governo – “é um jogo que tem que fazer para governar o país, entendeu?” Não há nele, pois, nada de errado.
Errado está o procurador-geral da República, que, na sua espessa ingenuidade, ainda não entendeu que “esse é um jogo que tem fazer para governar o país”. Ou seja, a corrupção não é nem mais optativa – é imperativa. Sem ela, não há governabilidade.
Eis aí um conceito novo que estabelece a vitória definitiva do Mal no Armagedon em que se converteu a política brasileira. Wagner Tiso disse e repetiu que não quer saber de ética: está “preocupado com o jogo do Poder”. Não disse que jogo é esse, mas proclamou o acerto das alianças do PT com os antigos adversários para governar.
Entre os antigos adversários, os ex-governadores Newton Cardoso (MG) e Jader Barbalho (PA), para os quais o PT há não muito tempo pedia simplesmente cadeia. Eis o que fundamentou o mensalão: a necessidade de formar maioria parlamentar, não importa como – e de preferência da forma mais prática.
Entre atrair aliados com base em idéias – coisa trabalhosa e improvável - e atraí-los com base em dinheiro, pareceu mais simples e pragmática a segunda opção. Captou-se dinheiro na máquina estatal – impostos do contribuinte – e repartiu-se entre os aliados, formando-se um exército de mercenários no Congresso, disposto a aprovar o que o governo quisesse.
Bastava pontualidade nos pagamentos. Algo, porém, deu errado, e um dos beneficiários – o antigo adversário Roberto Jefferson, ex-tropa de choque de Fernando Collor, cujo impeachment Lula e o PT comandaram – veio a público denunciar a manobra.
Sentiu-se desatendido em alguma coisa e virou a mesa, tal como naqueles filmes de gângster em que não se chega a um consenso na hora da partilha e o tempo fecha. Lula, dias antes da denúncia de Jefferson, freqüentador assíduo do Palácio do Planalto e adjacências, considerou-o um grande sujeito, alguém a quem entregaria “um cheque em branco e, a seguir, dormiria tranqüilo”. Nada menos.
Se esse é o “jogo do Poder” – expressão genérica e imprecisa que lança um estigma fatalista sobre a condição humana -, então não faz sentido combater coisas como PCC e Comando Vermelho. Eles praticam o mesmo jogo – e até com maior transparência e objetividade. Vão direto ao assunto, sem maiores blá-blá-blás. Com eles, ao menos, sabe-se com quem se está falando.
Um dos argumentos com que se tenta banalizar o imbanalizável (vale o neologismo) é o de invocar situações análogas do passado. Chico Buarque, em entrevista à Folha, em maio, mencionava o episódio da votação no Congresso da emenda da reeleição, no primeiro mandato de FHC, como se o erro de um atenuasse ou mesmo absolvesse o do outro.
Wagner Tiso faz o mesmo, na entrevista do dia 23 passado a’O Globo. Diz: “Ninguém nunca falou do caixa dois da reeleição do Fernando Henrique”. Claro que falou. Foi tema que consumiu quilômetros de noticiário e tornou-se um dos carros-chefes do discurso eleitoral petista – e até mesmo fator de adesão de muita gente desencantada ao PT. Gente que achava que a ética estava bem defendida pelos tucanos e se decepcionou.
Basta que Tiso consulte os jornais da época, incluindo as reuniões de intelectuais com Lula, na campanha de 2002. Fernando Henrique, a emenda da reeleição e algumas das privatizações de seu governo constaram de numerosas e veementes denúncias - e o PSDB até hoje está marcado por elas.
Em nenhum momento, no entanto, ninguém veio a público proclamar que aquilo estava certo e que política é daquele jeito mesmo. Negavam-se as acusações, ainda que sem argumentos convincentes, e nessa negativa estava ao menos embutido o reconhecimento de que aqueles atos eram nefastos e não podiam (como não podem) estar presentes na vida pública.
Agora, não: diz-se que é assim mesmo, que ninguém deve se preocupar com isso, que é impossível governar “sem botar a mão na merda”, e bola pra frente. La Rochefoucauld dizia que “a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”. Pior que a hipocrisia é o escracho, túmulo da virtude, em que querem confinar a política brasileira. E isso é mais trágico que a soma de todas as ditaduras.
No horário eleitoral gratuito, Lula fala de um país cor-de-rosa, inexistente, enquanto o inacreditável Geraldo, passando por cima de todos os acontecimentos recentes que remeteram a ética para o chiqueiro, coonesta tudo, com sua plataforma miúda, que mais parece a de um candidato a vereador de Piracicaba.
Mas, como não é possível não crer em nada, o único meio de encerrar este artigo sem deixar o leitor sem saída é recorrendo aos préstimos ético-estilísticos de Millôr Fernandes: "Acreditar que não acreditamos em nada é crer na crença do descrer."
Não creio nela.

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